segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Questões sobre o livro 1984 de George Orwell


O tempo.

O tempo relatado efetivamente por Orwell não é o futuro nem o presente, mas sim o passado. É a relação do ser humano representado por Winston, com o próprio passado que dá conteúdo ao romance. Um protagonista sem passado em um drama contextualizado em um tempo e um espaço. É esse o desespero de Winston conhecer o seu passado. Mas, como afirma um dos slogans do Partido: quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado.

História.

Contextualizando o autor, o livro relata os regimes totalitários dos grandes ditadores da época de Orwell: Hitler, Mussolini e Stalin. Qualquer um deles se enquadraria no perfil do Grande Irmão ou ainda uma mistura de todos eles, pegando de cada um o que melhor os garantiu enquanto ditadores, afinal, nunca se viu o Big Brother e, sendo um computador, pode juntar a maior qualidade de cada um destes figurões históricos. Uma característica, talvez um pouco extremista, é de que no livro, assim como nos regimes totalitários, o poder cultiva a revolta em algumas pessoas para mostrar quem, afinal, exerce o poder. Winston foi, seguramente, instigado a se rebelar e viver um drama de final trágico. Dentro do livro a história e o passado são de domínio do Partido, que molda o passado para se acomodar no presente e manter, invariavelmente, as forças de poder no poder.

Baralha a ordem do tempo permitindo mudança do passado:

- O passado existe concretamente, no espaço? Existe em alguma parte um mundo de objetos sólidos, onde o passado ainda acontece?
-Não.
-Então, onde é que existe o passado, se é que ele existe?
-Nos registros. Está escrito.
-Nos registros. E em que mais?
-Na memória. Na memória dos homens.
-Na memória. Muito bem. Nós, o Partido, controlamos todos os registris, e controlamos todas as memórias. Nesse caso, controlamos o passado, não é verdade?
-Mas como podes impedir que a gente se lembre das coisas?!! É involuntário. Está fora do indivíduo. Como podes controlar a memória? Não controlaste a minha.


E assim Orwell demonstra como se é possível controlar a história, controlar o passado, mudar o passado e “baralhar” a ordem do tempo. Todo o tipo de registro que não interessava ao poder era por vezes eliminado, por outras moldado (ou mudado). Frequentemente mudavam várias vezes de acordo com a conveniência. Mas será que o monopólio da história é privilégio do futuro? Um absurdo deste acontece no nosso presente? É necessário tecnologia para controlar a história? Um contemporâneo de Orwell se questionou quanto a isto exatamente uma década antes. O dramaturgo Bertold Brecht escreveu de forma maestral um poema chamado Perguntas de Um trabalhador que lê no qual busca a compreensão do domínio da história por quem detém o poder. Vamos ler a obra abaixo.

PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ
Bertold Brecht


Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que
a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo
Quem os ergueu? Sobre quem
triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
tinha somente palácios para os seus habitantes? Mesmo
na lendária Atlântida
os que se afogavam gritaram por seus escravos
na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua armada
naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?

Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões.

sábado, 29 de outubro de 2011

Weber, Marcuse e o Agir Racional

Max Weber introduziu o conceito de “racionalidade” a fim de determinar a forma da atividade econômica capitalista, das relações de direito privado burguesa e da dominação burocrática. Racionalização quer dizer, antes de mais nada, ampliação dos setores sociais submetidos a padrões de decisão racional. A isso corresponde a industrialização do trabalho social, com a conseqüência de que os padrões de ação instrumental penetram também em outros domínios da vida (urbanização dos modos de viver, tecnicização dos transportes e da comunicação). Trata-se, em ambos os casos, da propagação do tipo de agir-racional-com-respeito-a-fins: aqui ele se relaciona à organização dos meios, lá à escolha entre alternativas. A planificação pode finalmente ser concebida como um agir racional-com-respeito-a-fins, de segundo grau: ela se dirige para a instalação, para o aperfeiçoamento ou para a ampliação do próprio sistema do agir racional-com-respeito-a-fins. A “racionalização” progressiva da sociedade está ligada à institucionalização do progresso científico e técnico. Na medida em que a técnica e a ciência penetram os setores institucionais da sociedade, transformando por esse meio as próprias instituições, as antigas legitimações se desmontam. Secularização e “desenfeitiçamento” das imagens do mundo que orientam o agir, e de toda a tradição cultural, são a contrapartida de uma “racionalidade” crescente do agir sócia.

Herbert Marcuse partiu dessa análise para mostrar que o conceito formal de racionalidade –que M. Weber tirou do agir racional-com-respeito-a-fins do empresário capitalista e do trabalhador industrial assalariado (...) [etc.] –tem implicações materiais determinadas. Marcuse está convencido de que, no processo que Weber chamou de “racionalização”, dissemina-se não a racionalidade como tal, mas, em seu nome, uma determinada forma inconfessada de dominação política. Visto que se estendo à escolha correta entre estratégias, ao emprego adequado de tecnologias e à organização de sistemas de acordo com fins (...) essa espécie de racionalidade subtrai à reflexão a contextura de interesses globais da sociedade –ao serem escolhidas as estratégias, empregadas as tecnologias e organizados os sistemas –, furtando-a a uma reconstrução racional (...) O agir racional-com-respeito-a-fins é, segundo sua estrutura, o exercício do controle. “Talvez o próprio conceito de razão técnica seja uma ideologia. Não apenas na sua aplicação, mas já a própria técnica é dominação (sobre a natureza ou sobre o homem), dominação metódica, científica, calculada. Não apenas de maneira acessória, a partir do exterior, que são impostos à técnica fins e interesses determinados –eles já intevêm na própria construção do aparato técnico; e técnica é sempre um projeto histórico-social; nela é projetado aquilo que a sociedade e os interesses que a dominam tencionam fazer com o homem e com as coisas. Tal objetivo da dominação é “material” e, nessa medida, pertence à própria forma da razão técnica.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

ARTE E MÍDIA: a análise de um texto

1- Identificando os procedimentos do autor em cada parágrafo

P1: No primeiro parágrafo do livro, a introdução, o professor Arlindo Machado busca contextualizar o leitor no que diz respeito ao conceito de ARTEMÍDIA, explicando já de maneira fácil e direta do que se trata o livro como um todo sem deixar de ser amplo e profundo.

P2: Em seguida, Machado vai ampliar o conceito para além de quesitos técnicos, passando a debruçar-se na divisão da expressão, ou seja, a “arte” e a “mídia” para melhor analisa-lo ao longo de toda a obra, deixando o gancho para o que será o capítulo seguinte. Aqui já se encerra a introdução.

P3: No que seria um segundo capítulo titulado “Arte e Mídia: aproximações e distinções”, Arlindo Machado passará por sobre a teoria de Walter Benjamin e o seu artigo principal, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Como é de costume de Machado, as idéias são colocadas em sua obra sem que as referências sejam devidamente citadas. Em todo caso, ficará claro que, como diz o professor, “A arte sempre foi produzida com os meios de seu tempo” - o que nos remete ao frankfurtiano Benjamin, para assim a obra chegar ao conceito de arte e mídia na sociedade contemporânea.

P4: Neste parágrafo, Arlindo Machado dissertará belamente sobre como a arte se apropria de aparatos tecnológicos que não são produzidos, em sua origem, pensados para um uso artístico. Porém, o artista não se limita a ver uma “máquina” apenas para o uso que lhe foi conferida e a subverte para produções artístico-culturais de toda a sorte. O capítulo é encerrado com a trajetória que desemboca no nascimento da poderosa indústria fonográfica.

P5: Dentro da mesma idéia de indústria fonográfica e sua reprodução em série para o acumulo de capitais no sistema vigente –ou seja, o capitalista –Machado vai contextualizar o cinema, a fotografia, o vídeo e o computador no mesmo eixo, concentrando-se nas peculiaridades desta última máquina –o computador- e o impacto da digitalização nas produções artísticas.

P6: Neste momento, o professor Arlindo expõe as qualidades da imagem digitalizada dentro da lógica da reprodutibilidade técnica.

P7: Agora, de maneira complexa, as limitações da imagem cinematográfica digitalizada são expostas, permitindo perceber os pontos mais fracos desta “compactação da imagem” em sua forma digital, não permitindo nuances que a pintura, por exemplo, permite.

P8: Em uma área de conhecimento em que Arlindo Machado domina como poucos no Brasil, ele passa a falar de obras artemidiáticas produzidas nos primórdios desta produção artística, lembrando que a arte é um grande desvio em termos perspectivos do uso que originalmente se atribuiu a determinadas maquinarias, lembrando obras de Nam June Paik, Frederic Fontenoy e outros.

P9: A partir daqui, Machado –novamente sem fazer citações bibliográficas diretas –vai começar a introduzir as teorias de Vilen Flusser e a idéia de artista em contraposição ao funcionário diante de uma máquina.

P10: Machado trabalha um exemplo que remete à teoria de Vilen Flusser.

2. Avaliar o texto:

A - parágrafo inicial: o parágrafo inicial, parte componente da introdução, está bem contextualizado, trazendo a origem norte-americana do termo artemídia e explicando por uma perspectiva ao mesmo tempo universal e local. O tema é relevante por termos poucos trabalhos de artemídia realmente conceituados no Brasil, o que justifica a obra do autor que, embora curta e de rápida leitura, é esclarecedora. Acredito que artistas como um todo devem ler a obra, em especial o que lidam com vídeo e produção de imagens.

B- O tema está bem definido e proposta de forma objetiva e comunicativa, característica das obras de Arlindo Machado. Podemos dizer que dentro da temática abordada, Machado é a maior autoridade entre acadêmicos no país, pois este livro é obra que dá continuidade a outras publicações suas, como “Máquina e Imaginário”, publicada já em 1993. Embora isto esteja posto, ficaria como crítica ao autor o fato de ele pouco fazer referências bibliográficas nesta obra e, diga-se, no conjunto de suas obras como um todo. Ainda que não ocorra a citação, percebe-se a pesquisa realizada na área e a citação implícita de autores que Machado faz, demonstrado ser pessoa de grande erudição.

C- A idéia é desenvolvida com maestria. Para uma obra tão pequena, o tema está por demais encorpado. Vale lembrar que Arlindo Machado é o maior curador de exposições de artemídia no país, tendo em seu currículo curadorias desde a década de 1980, entre elas “Arte e Tecnologia” (MAC-SP, 1985), “Cinevídeo” (MIS-SP, 1992-3) entre outras que ocorreram recentemente, como Emoção Art.Ficial II. Envolvido com pesquisa e com a arte em si, podemos dizer que suas idéias são desenvolvidas com real conhecimento de causa, embora a sua metodologia –perfeita em seu desenvolvimento- peque, como já foi dito acima, pela falta de citações diretas dos autores a quem toma emprestado as suas idéias. Os exemplos citados são quase pedagógicos, facilitando o entendimento do tema e da teoria que norteia certa caminho a ser traçado e os argumentos são consistentes e dignos de alguém que é visto por muitos como a autoridade maior no assunto.

D- O referencial teórico é adequado. Falta a citação direta de várias idéias, o que pode levar um leitor meramente curioso a pensar que a idéia de “era de sua reprodutibilidade técnica” tenha sido criada recentemente e não, como sabemos, no final da década de 1930. Todavia, ao final do livro não faltam jamais os livros de Benjamin. Quanto à idéia emprestada de Flusser, Machado foi mais generoso e dedicou um pequeno capítulo a falar deste pensador, já que podemos afirmar que o professor Arlindo é quase um discípulo do filósofo checo, pois foi parte do círculo flusseriano quando este esteve no Brasil fugido da Europa Oriental. Podemos dizer, portanto, que em função de sua metodologia de escrita e apresentação de idéias, Machado quase não faça citações, deixando o seu texto fluente e quase que apenas com “idéias próprias”. Todavia, quando faz citações ou paráfrases, o faz com conhecimento e, podemos dizer, em casos em que é extremamente necessário.

E- Ainda que estejamos falando de uma obra rápida (a publicação nem chega a ter 100 páginas e é em formato de livro de bolso) não faltam fontes primárias e secundárias. Há uma bibliografia semi-comentada ao final da obra, no qual constam as fontes e as referências bibliográficas, demonstrando se tratar de uma mera escolha por tornar o texto fluente, esta maneira de citar as idéias de outrem (uma escolha questionável, mas consciente).

F- Os parágrafos estão bem conectados, não faltando ao final de um que termina, conexão com o que começa, o mesmo ocorrendo com os capítulos. Tudo apresentado de maneira fluente, objetiva, ampla, profunda e bem estruturada.

G- A obra apresenta alguns gráficos extremamente simples para explicar conceitos básicos de semiótica. Quanto a notas e citações, estas estão presentes ao final da leitura, de maneira conectada com palavras do autor como “as idéias de tal página foram tiradas de tal autor em livro x”. Embora seja preferível, a meu ver, notas nas páginas em que foram feitas as citações, isto deixa claro duas coisas: em primeiro lugar que se trata de uma obra realizada para a fluência e a leitura fácil (dada, inclusiva, o apelo mercadológico do tema). Em segundo lugar demonstra a primazia pela fluência em vez de um certo academicismo.

A pequena obra apresenta algumas críticas já visíveis em outras publicações do autor, porém nada que venhamos a dizer que nas idéias de Arlindo Machado, o que é apresentado não há relevância. Pelo contrário, na linha de Canclini, também citado no livro Arte e Mídia, apresenta formas e formatações enquanto propostas que só podem ser dadas dentro de uma idéia de apropriação e transformação de arte e das tecnologias que poucos poderiam formular com tanta objetividade e clareza quanto Machado. Para o acadêmico, deve ser lido junto a outras obras do professor Arlindo, porém, para um curioso, será uma obra de valor quase transcendental, principalmente se este curioso for um artista sem pretensões outras que não seja o conhecimento pelo simples conhecer.

MACHADO, Arlindo, Arte e Mídia, Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

Nietzsche Entre Montanhas

Dos aforismos, retirarei um de cada livro entre os citados: Ecce Homo, Assim Falou Zaratustra e O Anticristo e ainda um da obra Aurora. Começando por este último:

“Ai! Nenhum de nós conhece o sentimento que experimenta o torturado depois da tortura, quando foi reconduzido à sua cela com o seu segredo! –Ele o guarda entre os dentes. Como querem conhecer o júbilo da altivez humana ”.

Recentemente tivemos no congresso brasileiro um caso em que o senador José Agripino (DEM-RN) questionou a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, insinuando que a ministra poderia estar mentindo em suas entrevistas, já que quando foi torturada, mentiu aos militares brasileiros . Não vou adentrar no caso mas deixo abaixo o incidente tal como ocorreu e está registrado no you tube. A ministra responde a José Agripino Maia:

“Eu tinha 19 anos, eu fiquei três anos na cadeia e eu fui barbaramente torturada, senador. E qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para seus interrogadores, compromete a vida dos seus iguais. Entregam pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, senador, porque mentir na tortura não é fácil. Agora, na democracia se fala a verdade. Diante da tortura, quem tem coragem, dignidade, fala mentira”.

Embora o que eu tenha aqui não seja especificamente um belo comentário sobre o aforismo nitzschiano, posso apenas afirmar que, como disse o filósofo alemão, eu não sei qual sentimento experimenta o torturado quando consegue guardar o seu segredo. Mas já que no Brasil tivemos a má oportunidade de viver sobre um regime ditatorial militar e, infelizmente, tivemos muitas pessoas torturadas, ao menos nos restou o orgulho daqueles que puderam guardar tais segredos entre os dentes e que aqui podem nos informar com um orgulho à beira do choro (embora com uma pontada de indignação diante da insinuação do senador Agripino) como é escapar de três anos nas mãos de torturadores com o segredo ainda guardado.

“A última coisa que eu haveria de prometer seria ‘melhorar’ a humanidade. Eu não haverei de erigir nenhuns novos ídolos; que os velhos aprendam o que significa ter pés de barro ”.

Pois bem, antes de tudo, vale lembrar que Nietzsche escreveu a obra “Crepúsculo dos Ídolos ” na qual fala do quanto os ídolos interferem no desenvolvimento intelectual humano fazendo com que os homens caminhem com o que aqui ele denominou de “pés de barro”. Esta obra “crepuscular” tem como um dos objetivos ironizar os anteriores filósofos da humanidade, chocando a própria filosofia tradicional. Nada muito forte perto do que irá ocorrer após o livro “O Anticristo”.
Em todo caso, isto, em minha opinião, reforça a idéia de que este filósofo não criou uma filosofia da arrogância. Ao menos não uma arrogância pura e simples, sem uma profunda complexidade.

Nem seu Zaratustra e nem ele próprio (há pouca diferença entre eles) buscam a mitificação, a idolatria. Zaratustra jamais chega a ser um falante popular, mais perseguido que amado e seguido apenas por um punhado de homens superiores. Homens que, por serem superiores, devem encontrar a solidão, fugir dos ídolos e propagar a morte de Deus.

Do Zaratustra, chega até a ser difícil escolher um aforismo dentre tantos que podem ser escolhidos ao longo da obra. Farei como indica o livro “Minuto de Sabedoria” no qual sugere que tudo o que ali está é sábio e que basta ao leitor abrir aleatoriamente em qualquer página e ler o que ali está contido, refletindo sobre o que foi lido e aprendendo algo com aquilo.
No sorteio sai “Como quereis renovar-te sem primeiro te reduzires a cinzas? ”. Esta frase remete a diversos elementos do conjunto da obra de nosso autor. A pergunta afirma na realidade que um filósofo ou um sábio deve se destruir, afastar-se do que é virtuoso, do que é bom, do encontro ao caminho que “te guia a ti mesmo ”, o caminho sem facilidades, o caminho da solidão, o caminho aflitivo a si próprio, o caminho livre dos bons e justos, livre dos impulsos do amor, o caminho da vida nas cavernas e nos bosques, o caminho sempre diante dos próprios demônios. “Serás herege para ti mesmo”, diz Zaratustra, “serás feiticeiro, adivinho doido, incrédulo, ímpio e malvado”. O sábio se consome na própria chama para chegar ao caminho do criador, ama a si próprio e por isso se despreza “como só desprezam os amantes”. “Eu amo o que quer criar qualquer coisa superior a si mesmo e dessa arte sucumbe”.

Como eu disse, é até difícil escolher algo semelhante a um aforismo nesta obra cheia de sabedoria nietzschiana.

Vamos, portanto, ao último aforismo. Aquele retirado da última obra que li de Nietzsche e que, portanto, é a que mais ressona em minha mente no momento.

Cresci em uma família em que eu perguntava a meus pais e tios “afinal, Deus existe?”. A resposta variava muito pouco. Como alguns são católicos enquanto outros ateus inveterados, a resposta ensaiada por todos girava em torno de “quando você crescer você decide” ou “quando você crescer você descobre”. Assim, o ateísmo faz parte de mim desde os poucos anos de idade, quando decidi que a idéia de Deus não fazia sentido ou simplesmente não me satisfazia. Apenas lembro que na adolescência era legal e diferente ser o único ateu da turma.

Ainda assim, a obra O Anticristo não deixou de ser um “soco no estômago”. Um tratado contra o cristianismo elaborado de maneira contundente por um filósofo que foi filho de um pastor protestante e que, também em função disto, conhecia profundamente a bíblia (com B minúsculo mesmo).

Desta maneira, pego uma frase do início do livro no qual sintetiza o que para Nietzsche é o cristianismo. “O que é mais nocivo do que todos os vícios? –A compaixão que suporta a ação em benefício de todos os fracos, de todos os incapazes: o cristianismo ”.

Não há razão para prolongar comentários aqui mais do que os que já foram ditos. Fica claro porém o que, para Nietzsche, há de nocivo no cristianismo. A piedade, a compaixão e os princípios cristãos como um todo enfraquecem o homem e a sociedade. Nietzsche luta contra todos os dualismos, principalmente aqueles maniqueístas impostos pelo cristianismo. Deus está morto, O Anticristo são os novos valores de uma humanidade que deve aprender a viver sem Deus.

Aqui Nietzsche é quase niilista, e o cristianismo é o caminho de respostas que vão contra a própria existência da vida. Mas contra o dualismo tal como é Nietzsche, nesta obra também fica claro o quanto nem a fé nem a razão são os caminhos certos da existência humana. Apesar do que sugere o título, Nietzsche é um grande admirador de Jesus Cristo, acreditando ter sido ele o único e verdadeiro cristão. Por isso, uma outra frase importante do pensador ao dizer que “o evangelho morreu na cruz”.

Sobre o filme "Quando Nietzsce Chorou"

O filme “Quando Nietzsche chorou” é sem dúvida uma boa estória sobre uma grande história. Eu nem cheguei a me deter quanto à veracidade dos fatos (o que também não pretendo fazer) e tampouco li o livro homônimo que originou a película, ainda que tenha ficado curioso quanto a tal conteúdo. Importa, para mim, que acima de tudo foi uma boa narrativa contada de maneira irônica sem deixar de ter certa profundidade, mesmo que saibamos que em termos holywoodianos profundidade não é das ferramentas preferidas.

A atuação dos atores foi interessante, embora fosse preferível que o filme estivesse em alemão para maior convencimento, mas os sotaques germânicos, além da atriz com acento russo (que interpretava Lou Salome), foram perceptíveis até mesmo entre os que não dominam a fala inglesa.
O intrigante é que aqueles que já se dedicaram um livro que fosse na profunda alma de Nietzche se perguntaria, como eu fiz e imagino que outros o fizeram, “o que diabos tiraria lágrimas de Nietzsche?”. Em princípio, um homem fora de seu tempo, um precursor de tempos vindouros, um filósofo que não tinha como ser compreendido em seu contexto mas que nem por isso fraquejou e desta dificuldade retirou suas forças. Um homem forjado no perigo que prenunciou (ou melhor, anunciou) a morte de Deus.

Claro que o clichê de “Deus está morto” foi utilizado levianamente no filme (é Estados Unidos, não esqueçamos). Também é claro que o Sigmund (Dr. Freud) foi utilizado como o pensador “pop” que merecidamente o é, e como tal, um ator perfeitamente bonito e apessoado, chamado carinhosamente de “Sig” pelos maiorais do filme. Mas poderia ser pior. Os roteiristas estadunidenses poderiam ter mudado a narrativa do livro e colocado Freud com Nietzsche simplesmente porque venderia melhor (já fizeram algo parecido, como no caso do “Liga Extraordinária”, um entre milhares de exemplos). Mas aqui não é o caso para se falar do que poderia ter sido feito e sim do que fizeram.

Fato é que conseguiram colocar uma comédia irônica quando o filme centrava mais no Dr. Breuer ao mesmo tempo em que passaram a desesperadora loucura genial do filósofo alemão que pensou o suprahomem. Fato importante de se fazer nota, separaram bem as idéias nietzscheanas das idéias nazistas, inclusive colocando erroneamente (mas não despropositadamente) que tais idéias separaram Nietzsche de Wagner. Fizeram isto de maneira subentendida, mas o fizeram.

De aforismos e montanhas

Fazia algum tempo que eu esperava as ditas aulas que colocavam em diálogo Nietzsche e a comunicação. Entre alguns alunos mais interessados, já comentávamos tal diálogo era em si intrigante e que fosse por qual fosse o motivo, valeria a pena assisti-las.

Minhas histórias pessoais com as obras de Nietzsche sempre foram curiosas. O primeiro livro que li do filósofo foi Ecce Homo e quando me pus a ler acreditei que não iria realmente gostar do que estava por vir, porém, tenho um ditado pessoal o qual diz que “clássicos não devem ser apenas discutidos, devem ser lidos”. Assim, a qualquer momento eu iria passar por Nietzsche ainda que fosse por mera formalidade intelectual.

Pois bem, não preciso dizer o quanto foram avassaladoras as palavras do filósofo alemão a cada página que lia. Virei fã incondicional de Nietzsche e me pus a ler mais sobre ele e do que ele escreveu.

Domino um pouco da língua e acabo por conviver com diversos círculos de alemães nos quais pude fazer alguns debates. Porém, notei que a percepção que adquiri da obra nietzschiana era um tanto distinta, principalmente em função do fato ao qual alguns dos adeptos deste autor acreditavam que a obra era uma ode a um estilo de vida de certa forma pedante, para não dizer diretamente arrogante. Eu, de minha parte, não via da mesma maneira.

Acredito, antes de mais nada, que a vida miserável que levou Nietzsche, entre a eterna angústia e loucura solitárias, não o direcionaria à arrogância pura e sim à percepção que ele mesmo tantas vezes bradou e da qual eu compartilho: ele era um homem à frente de sua época. Em seu Zaratustra dizia: “para os homens sou algo intermediário entre o doido e o cadáver ”.
Acreditar ser visto desta maneira pelos homens não é motivo de orgulho em momento algum da obra nietzsciana, obra intrinsecamente ligada à sua própria biografia. Tal maneira de ver o mundo e por ele ser visto, levou-o a desconfiança total e o fez abandonar a vida social em 1881, ano em que tentou o suicídio por três vezes. Por estas razões, vejo em Nietzsche um visionário fora de sua época, que tira

Mesmo a idéia de supra-homem é um ideal de humano a que Nietzsche desejava para a humanidade como um todo e não apenas para si. O próprio Zaratustra, alterego do filósofo, angustiava-se por não ser a sociedade ainda composta por supra-homens, mas a superação do homem para esta nova fase seria tão natural quanto a do homem em si diante do macaco. “Que é o macaco para o homem? Uma zombaria ou uma dolorosa vergonha. Pois é o mesmo que deve ser o homem para Super-homem (Übermensch): um irrisão ou uma dolorosa vergonha ”.

Mas continuando na narrativa de minhas histórias pessoais com a obra de Nietzsche, crio que após o Ecce Homo eu realmente finalizei a leitura da obra com duas idéias principais. A primeira era a de que para escrever uma autobiografia colocando-se como superior aos amigos e a humanidade como um todo, havia mais de loucura do que de soberba naquele homem. A segunda idéia era mais clara, era que seria impossível ler uma obra de Nietzsche sem ser profundamente tocado por ela. E desta maneira segui, meses depois de Ecce Homo, para o Zaratustra.

Nestes entremeios de leituras, sabíamos, pela grade curricular, que em breve teríamos, como já foi dito, uma disciplina no mestrado na qual Nietzsche seria colocado diante de questões comunicacionais. Estamos falando de 2009. Muitos fizemos a disciplina e, na semana seguinte à disciplina, passe um trabalho de análise fílmica para meus alunos de produção audiovisual. Para a resolução do trabalho, cada aluno escolheria um filme e uma aluna acabou por escolher coincidentemente o filme quando Nietzsche chorou.

Após fazer a disciplina estar com este filme na mão, seria impossível não assistir a tal história. Assisti e fui tocado pelo filme. Decidi então que era hora de ler mais uma obra nietzschiana. O livro escolhido foi “O Anticristo”. Um livro forte, cheio de caos e verdade. Desrecomendado para carolas e beatos.

Enfim, foi chegada a hora de fazer o trabalho da disciplina do mestrado e a tarefa era comentar cinco aforismos de Nietzsche. Eu, de minha parte resolvi subverter um pouco essa Aufgaben e comentar quatro aforismo e o dito filme do qual falei. Acho até mesmo que já citei dois aforismos de Nietzsche e que se quisesse ficar com apenas mais três (ou mais dois e o filme) daria conta do recado passado pelo professor Dr. Francisco. Mas vamos devagar devagarinho, matando um leão por vez. Nietzsche disse em seu Zaratustra que um aforismo é como ligar os topos de duas montanhas. Não é necessário percorrer os longos caminhos entre um topo e outro se em um homem existe a capacidade de compreender os aforismos –e claro, de criá-los.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Um olhar sobre eu personagem e o pânico da solidão

O objetivo deste trabalho é tão somente lançar um olhar sobre o texto selecionado de Paula Sibilia. Após ler este capítulo de obra “Eu personagem e o pânico da solidão”, passei a questionar o meu lugar diante das mídias e novas tecnologias da virtualidade. Me posicionando em um lugar comum perigoso, fico entre os caminhos de quem pode viver sem internet, porém usufrui constantemente dela, lembrando longinquamente que tias críticas à web e suas benesses\seus malefícios me lembram vagamente ruídos que ouvi sobre a TV, veículo ao qual –este sim –nasci e cresci ao lado.
Aqui não poderia me prestar ao rigor acadêmico, pois toda a reflexão é ainda muito recente para mim. O que fiz é algo como um ensaio-resenha-crônica de um texto que me estranhou –no sentido de estranhamento\novidade –e no qual por vezes me vi passionalmente ligado positivamente às idéias de Sibilia e por outras acreditei ver em suas palavras uma crítica a certas condutas das quais eu compartilhei e não necessariamente cheguei a concordar com a autora.
Se em determinados momentos parecer que estou concordando ou discordando de Paula Sibilia, em meu íntimo apenas estava refletindo suas palavras. São idéias que se debruçam sobre algo muito recente, atual e que mesmo ela não chega a atingir tais questões da maneira mais acadêmica tradicional ou como sonharia o mais intenso dos pesquisadores de comunicação –ao invés da pressão por autores atuais, ela dialoga a internet e a web principalmente com Walter Benjamin e Guy Debord.
Assim, estando em outro campo de pesquisa e pouco tendo refletido sobre mídias da virtualidade e a sociedade que a cerca, pouco mais farei que deixar meus pensamentos fluírem sobre o assunto.


O olhar sobre outro olhar

Eu não nasci com um computador na mão, mas na minha casa –de meu avô, em realidade –já tinha televisão. Cheguei a ver quando a velha TV preto e branco foi trocada por uma colorida. Tinham vizinhos que iam e vinham, de acordo com a programação televisiva, bem como algumas horas eram sagradas para nós crianças, pois era hora de determinado desenho animado ou uma série imperdível.
Pois bem, pouco tempo depois veio o computador, e de lá para cá alterno momentos em que me sinto integrado e outros apocalípticos; momentos de estabelecido e de outsider. Desta maneira, o texto de Paula Sibilia mexe com uma pergunta íntima, na qual eu me questiono “afinal, como é que eu me encaixo em tudo isto?”.
Embora ela cite que ao artesão medieval, importava à sociedade ao seu entorno “o que ele fazia, e não o que ele era ”, me questiono se já nas sociedades medievais não havia jogos de papéis e de representações. Em realidade, falando como o historiador que pretensamente sou, tenho dificuldades em compreender reais mudanças no caráter humano ao longo de sua história, embora aqui não se trate precisamente de uma questão de caráter –nem o deixe de ser.
Já na década de 1930 Walter Benjamin afirmava que a narrativa estava em crise e a fábula quase perdida. Por vezes penso que com o advento da internet algo de narrativo e fabuloso volta às contações de história e suas variações, mas como isso ocorre ou se de fato ocorre, não posso dizer. Fruto desta geração híbrida que não nasceu com computadores mas em menos de uma década já começou a ter acesso a eles, consigo vislumbrar um mundo o qual não posso definir. Sei que o texto de Sibilia não é exatamente um farol para os mares tortuosos.
Não creio, fundamentalmente, que as belas narrações são um caso perdido, por exemplo. Acredito que é possível encontrar uma nova narrativa bela em meio ao mar tecnológico, bem como questiono –a mim mesmo –se em meio à quantidade não está contida –no oceano mais profundo e tenebroso –algumas qualidades. Chego até a imaginar que bom narrador cometeria o erro de colocar suas belas narrações na rede, sujeitando-se ao que há de pior, que não é a visibilidade, mas o milenar plágio que também se acelerou com os veículos virtuais.
Quanto ao brilho proporcionado pelas mídias, gerador de “celebridades que nascem e morrem sem nada ter feito de extraordinário” , continuo no plano dos questionamentos intermediários e levanto o ponto se é de fato ruim uma sociedade em que a fama atinge uma quantidade maior de pessoas. De um viés democrático, penso que a fama esteve historicamente ligada aos grandes homens e mulheres, oriundos principalmente de uma elite social. Embora este panorama não tenha encontrado o seu fim com a web, a democratização dos meios, que está ocorrendo no ocidente a passos lentos porém profícuos, acaba por democratizar as possibilidades, ocasionando assim um novo circuito de famosos.
O que cabe debater igualmente é o seguinte: podendo eu ser um famoso, o que, afinal, há de mais em um famoso? Ou seja, quando qualquer um pode ser um famoso, podemos começar a questionar o que tinham a mais os antigos famosos além de um glamour inacessível. Mas a aura está em declínio e com ela o glamour, “democratizando a fama”, percebo a humanidade dos antigos famosos, bem como a falsidade de diversas famas. Imagino ainda que os que superaram a todos os famosos efêmeros e se perpetuar no patamar mais alto, este sim será o famoso mais glamuroso, pois atingiu seu píncaro quando qualquer um se arvorava a alcançá-lo.
Sobre o eu alterdirigido e mutante , é talvez na indústria fonográfica onde podemos detectar o maior número de exemplos de como, neste momento, Sibilia atinge uma razão quase sem rebatimentos. A personalidade mutante é uma constante, por exemplo, no mundo pop musical, em que já não há qualquer fidelidade a estilos ou estéticas. Os chamados megastars, como Michael Jackson, David Bowie e Madonna, por exemplo, conseguem agregar valor a suas obras exatamente por serem mutantes, estando mais a mercê das volúpias do mercado que ao agrado dos fiéis fãs. Os códigos e as regras mudam, os astros são, em alguma medida, catalisadores e por outro lado sujeitos para além de qualquer escolha, pois devem estar interagindo constantemente com esses novos costumes e códigos, devendo igualmente serem facilmente adaptados ao dinamismo das mídias.
Entretanto, no momento em que Sibilia afirma que “essa dificuldade para conciliar o eu público e o eu privado (...) provavelmente esteja se extinguindo hoje em dia” , aqui volto a repensar o caso de que com a democratização dos meios, o glamour é igualmente democratizado ou totalmente desvendado. Ou seja, quando temos a percepção do que é uma edição, percebemos também que o famoso ostenta tal estatus em função de ter apresentado na esfera pública uma vida editada. Quando um indivíduo atinge acesso a meios de produção audiovisuais, alcança a possibilidade de editar a própria vida e percebe os truques e as tramas que revelam os famosos. Ao tentar uma boa filmagem de si e perceber que esta não foi possível pela falta de uma boa maquiagem e uma boa iluminação, compreende que a beleza do famoso, por exemplo, está vinculada a todo o domínio de uma técnica e tecnologia para além da mera beleza natural.
Também é perceptível, nos antigos famosos, o quanto eles preservavam a sua imagem, tornando um escândalo algo tremendo em função de ninguém conceber que Charles Chaplin batia na esposa ou que determinado ator/atriz detestaria, por exemplo, pobres ou era racista. Estando isto relacionado com a vida editada e com um caráter velado, a publicização da vida privada acaba por decretar o fim da separação entre esfera pública e esfera privada –o eu público e o eu privado- de artistas e humanizando-os ainda que contra a vontade destes.
De qualquer maneira pode surgir deste meio um novo tipo de artista com suas técnicas e conhecimentos mais palpáveis, o que é uma outra realidade. Com a facilidade do alcance à web, o autodidatismo fica mais latente. Cursos, vídeos e métodos antes confinado aos conservatórios e escolas agora podem ser acessados pela web, permitindo que o artista, por exemplo, possua um conhecimento construído no eu privado. A disponibilização destas informações pelos próprios autodidatas que usufruíram destes dados amplia a quantidade de pessoas que continuam acessando e se formando –ainda que majoritariamente de maneira parca –tornando o saber sobre uma determinada técnica algo menos mítico. Com isto pode-se até perceber que “fulano ou beltrano” não possui um conhecimento tão inestimável assim, ou que aquilo que se realiza não é um grande feito, pois agora se sabe como atingir tal saber.
Embora os reality shows sejam absolutamente tudo o que Sibilia afirma –ou ainda piores –eu, que estou no limbo entre a velha TV citada acima e o acesso às tecnologias da virtualidade, ainda sinto falta de que sejam citados determinados elementos positivos da web. O mesmo youtube, por ela tão duramente criticado, possui tantos programas e documentações visuais importantes, colocadas ali por usuários que deveriam ser melhor acessados por acadêmicos. Cito, por exemplo, o caso de minhas pesquisas sobre música na televisão durante o regime militar brasileiro. No Rio de Janeiro, o Museu da Imagem e do Som e parte do acervo visual da TV Globo pegaram fogo, sobrando apenas alguma coisa. Com o surgimento do youtube, usuários colocaram ali toda a sorte de festivais musicais televisivos, entrevistas de décadas atrás com cantores que vivenciaram o período, sendo agentes históricos ativos, que não posso me debruçar por muito tempo apenas a criticar negativamente a fonte de tantas informações.
No mesmo youtube estão também tutoriais e diversos manuais visuais que facilitam a utilização de diversas ferramentas, antes privilégio de alguns. Assim podemos, por exemplo, visualizar como se fosse uma aula a maneira de aprender quase qualquer programa –softwere- a ser instalado em um computador. Através dos fóruns tira-se dúvidas e nos portais de relacionamento podemos trocar informações sem que a preocupação primordial seja a fama de poucos minutos (ou segundos). Porém aos olhos de Sibilia este fato pode ter sido relegado a um segundo plano em função, claro, de ela estar tratando da constituição de uma personagem nas sociedades contemporâneas recentes, do início do século XXI.
No tocante às alterações corporais e à obrigação de ser singular , aqui a autora toca em um assunto que vem beirando o cúmulo do bizarro. Quando vemos que para atingir tal singularidade artistas como Marlin Manson deformaram todo o corpo, serrando os dentes e fazendo diversos implantes até tornar-se o que em qualquer época da humanidade seria um monstro, é porque sequer temos a clara noção do que é ser único ou que para ser único devemos nos afastar o quanto mais for possível do aspecto de humanidade. Isto sim é o que a autora afirma ser “converter o próprio eu em um show”, espetacularizar a própria personalidade “recorrendo a métodos comparáveis aos de uma grife pessoal que deve ser bem posicionada no mercado. Pois a imagem de cada um é a sua própria marca, um capital tão valioso que é necessário cuidá-lo e cultivá-lo, a fim de encarnar um personagem atraente no competitivo mercado dos olhares” .
É interessante notar como Sibilia percebe a queda da aura individual, que “teria se apagado com a proliferação de cópias, simulacros e falsificações de subjetividades descartáveis na sociedade do espetáculo, com sua fábrica de personagens alterdirigidas. Daí a ansiedade atual por recompor de algum modo a aura perdida, por se apropriar de qualquer coisa que pareça aparentada com aquela auréola de unicidade tão difícil de conseguir hoje em dia” . Remete um pouco a Freud quando este escreve sua obra de psicanálise coletiva titulada O Mal Estar da Civilização, em que o homem estaria eternamente procurando o elo perdido com a natureza ao mesmo tempo em que estaria invariavelmente se afastando da própria natureza e de suas leis, utilizando-se de artifícios –como os jardins ou vasos de plantas nas janelas de apartamentos –para provar a si mesmo que ainda está conectado com o natural.
Chegando a um ponto em que Sibilia cita mais uma vez Benjamin, explicitando o quanto a experiência está em vias de extinção na sociedade, de fato não apenas a experiência –individual e coletiva- quanto, e por conseqüência lógica, a memória. Na mordernidade já não mais narramos as nossas viagens, apenas mostramos as fotos. Não guardamos informações as mais necessárias para o caminhar da vida, acessamos ao google. Não gravamos os telefones dos entes familiares a quem mais ligamos, apenas acionamos um comando de voz no celular ou apertamos um botão em que está o nome da pessoa a quem nos interessa ligar. Até para um indivíduo falar sobre si mesmo, ele diz “acesse o meu blog, tudo da minha vida está lá”. E assim os seres humanos seguem até que venham a esquecer quem realmente são.